Um olhar crítico sobre a política antiterrorista dos Estados Unidos e seus interesses geopolíticos

Por Janilson Fialho*

O Governo Trump tentou classificar as duas maiores facções criminosas do Brasil — o Primeiro Comando da Capital (PCC) e o Comando Vermelho (CV) — como organizações terroristas. O governo Lula rejeitou tal classificação, e o fez porque compreende os interesses geopolíticos e estratégicos por trás dessa proposta.

Para quem conhece minimamente a lógica intervencionista dos Estados Unidos, sabe que essa proposta não passa de um pretexto para criar brechas legais que viabilizem futuras intervenções na soberania nacional. Ao classificarem essas facções como terroristas, os EUA ganham justificativas jurídicas e militares para atuar diretamente no Brasil — o que, na prática, poderia significar ações armadas, operações clandestinas, ou até bombardeios sob o argumento de “combate ao terrorismo”, algo já visto em outras partes do mundo.

A questão central é: por que os EUA querem classificar grupos criminosos brasileiros como terroristas, mas não aplicam a mesma lógica a grupos internos como a Ku Klux Klan ou movimentos neonazistas, que operam dentro do próprio território norte-americano? A KKK, por exemplo, promove um discurso baseado em ódio racial, supremacismo branco e violência — ou seja, uma ideologia abertamente terrorista. Mesmo assim, esses grupos continuam com permissão legal para existir e se manifestar. Isso revela uma clara seletividade na política antiterror dos EUA, que enfraquece qualquer autoridade moral que este país pretenda ter ao cobrar medidas de outros países.

Essa seletividade foi denunciada por figuras políticas importantes, como o ex-presidente da Bolívia, Evo Morales. Em declaração feita no Twitter, Morales acusou os EUA de utilizarem a "luta contra o terrorismo" como pretexto para invadir países, saquear recursos naturais e impulsionar a indústria armamentista. Segundo ele, os atentados de 11 de setembro de 2001 foram instrumentalizados como desculpa para a implementação de uma agenda expansionista global.

Morales tem razão: a política externa estadunidense tem se caracterizado por usar o terrorismo como justificativa para a concretização de interesses econômicos e geoestratégicos. A “guerra ao terror” permitiu que o Pentágono e a Casa Branca conduzisse uma campanha militar global, resultando em milhões de mortos, deslocados e na destruição de diversos países. E o mais grave: tudo isso sem um objetivo claro de vitória, pois, como aponta a crítica política internacional, essa guerra foi desenhada para não ter fim — um ciclo permanente de violência legitimado pelo medo.

Ademais, os Estados Unidos têm um histórico contraditório no que diz respeito ao terrorismo. Muitos dos grupos considerados hoje como ameaças — como a Al-Qaeda e o Estado Islâmico (ISIS) — foram, em algum momento, treinados, financiados ou instrumentalizados pela própria inteligência americana. A CIA, durante a Guerra Fria, apoiou o islamismo extremista como ferramenta para combater a União Soviética e conter movimentos nacionalistas no Terceiro Mundo. A Al-Qaeda nasceu, de fato, como um banco de dados de jihadistas recrutados pela CIA para enfrentar os soviéticos no Afeganistão.

O surgimento do ISIS está diretamente ligado à invasão do Iraque em 2003. O vácuo de poder criado pelos EUA após a derrubada de Saddam Hussein alimentou o radicalismo sunita, permitindo que o grupo terrorista ganhasse força. Apesar de declararem combate ao terrorismo, os EUA continuam, até hoje, apoiando certos grupos extremistas que servem aos seus interesses. O uso do terror como ferramenta geopolítica tornou-se prática sistemática.

Nesse cenário, não é surpresa que a política dos EUA no Oriente Médio gire em torno de dois interesses principais: o controle das reservas de petróleo e a sustentação do Estado de Israel. A ocupação do Iraque, os ataques à Síria e as sanções ao Irã têm sempre esses dois eixos como pano de fundo. A guerra serve tanto para enfraquecer os adversários de Israel quanto para controlar recursos energéticos estratégicos.

Os custos humanos e financeiros dessa política são imensos. Estima-se que a “guerra ao terror” tenha custado mais de 6,6 trilhões de dólares aos contribuintes americanos e causado a morte de milhares de civis inocentes. Ao mesmo tempo, ela beneficiou economicamente as elites do complexo industrial-militar de Washington, e foi usada para justificar a expansão da vigilância doméstica e a militarização das polícias dentro dos próprios EUA.

Mais preocupante ainda é o papel dos EUA no financiamento e apoio a Estados que praticam o terrorismo institucional. O exemplo mais claro disso é o apoio irrestrito a Israel, mesmo diante das inúmeras denúncias de crimes de guerra e violações de direitos humanos em Gaza. Desde outubro de 2023, a Faixa de Gaza tem sido bombardeada sistematicamente, resultando na destruição de cerca de 69% das estruturas do território e na morte de milhares de civis. Hospitais foram atacados, bairros inteiros arrasados e milhões de palestinos foram deslocados.

Mas essa destruição não é recente. Após a guerra de 2014, por exemplo, 13 mil casas foram destruídas. Em janeiro de 2023, segundo a ONU, 2.200 dessas casas ainda não haviam recebido financiamento para reconstrução. A assistência médica também é precária, e a justificativa israelense de que o Hamas utiliza hospitais como base militar apenas intensifica a tragédia humanitária.

Em meio a essa crise, o ex-presidente Donald Trump chegou a afirmar que os EUA deveriam assumir o controle de Gaza e que os palestinos deslocados não deveriam retornar para suas casas. Essa declaração explícita reacende a lógica colonial e violenta que fundamenta a política externa norte-americana no Oriente Médio.

Não é exagero afirmar que os EUA não apenas financiam grupos terroristas, mas também apoiam Estados com práticas terroristas, como o atual governo israelense. Isso evidencia que a retórica da “guerra ao terror” é puramente instrumental.

Um estudo recente da Universidade Estadual de Bridgewater mostra que os Estados Unidos realizaram cerca de 400 intervenções militares desde 1776, sendo a metade entre 1950 e 2019, e 25% após o fim da Guerra Fria. Os dados confirmam a tendência imperialista de Washington e seu desprezo sistemático pela autodeterminação dos povos.

Na América Latina, os EUA intervieram ativamente para garantir a instalação de ditaduras militares em diversos países, como o Brasil (1964), o Chile (1973) e a Argentina (1976). Com o apoio da CIA e a atuação da Escola das Américas, militares foram treinados para reprimir movimentos populares, torturar opositores e garantir os interesses econômicos dos EUA na região.

As teorias de Carl Schmitt e Otto Kirchheimer ajudam a entender essa lógica. Schmitt argumenta que “soberano é quem decide sobre o estado de exceção”. Nos EUA, essa doutrina se traduz em um aparato político que suspende o direito internacional sempre que seus interesses estão em jogo. Já Kirchheimer explica como regimes autoritários utilizam a lei como fachada para o poder arbitrário, criando legalidade sem legitimidade.

O uso da dicotomia “amigo-inimigo”, como defende Schmitt, é visível na política externa americana. Ao rotular inimigos como “terroristas”, “eixo do mal” ou “ameaça à democracia”, os EUA legitimam ações que violam soberanias e matam milhares de pessoas.

Diante de todo esse histórico, é mais do que razoável desconfiar da recente tentativa dos EUA de classificar facções brasileiras como terroristas. Essa movimentação soa como o prelúdio de uma narrativa que visa legitimar futuras intervenções no Brasil, sob o disfarce de combate ao crime. Seria ingenuidade acreditar que o objetivo é apenas a segurança: o que está em jogo é o controle político e econômico da região.

Em resumo, a experiência histórica nos mostra que a “guerra ao terror” é menos sobre proteger e mais sobre dominar. É por isso que qualquer tentativa de rotular atores locais como “terroristas” deve ser examinada com extremo ceticismo. O Brasil não pode se tornar mais um capítulo do expansionismo norte-americano.

* Janilson Fialho é músico, ensaísta e estudante de filosofia pela UEPB.

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