Confraria das Traças

Resenha: análise crítica do livro Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis

(Leitura coletiva do cap. I ao XX)

 

Hoje, 23 de junho de 2024, demos início a primeira discussão do grupo de leitura Confraria das Traças. Segundo o nosso cronograma, começamos a leitura de Memórias Póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis, no dia 9 de junho, e agora, após 15 dias, fizemos nossa discussão.

 

Alguns membros levantaram pontos interessantes sobre a obra. Por exemplo, o que acharam sobre a leitura, se gostaram ou não dela, como também apontaram as semelhanças que certas passagens da obra tem com a teoria de determinado filósofo.

 

Resumo

 

Maria Eduarda, que é minha aluna de violão e faz parte da Confraria, escreveu um excelente resumo dos capítulos que nós lemos até agora. Eis o resumo de Maria Eduarda:

 

A obra Memórias póstumas de Brás Cubas, de Machado de Assis (1839-1908), tem início com a declaração da morte de Brás Cubas — “um solteirão que expira aos sessenta e quatro anos” —, cujo narrador e protagonista relata suas memórias após ter sido vítima de uma pneumonia ou, como ele afirmava de “uma ideia grandiosa e útil”. Pertencente a uma família bastarda do século XIX, Brás Cubas narra primeiramente sua morte e enterro onde apareceram somente onze amigos, ele também afirmava não ser propriamente um autor defunto, mas sim um defunto autor.

 

Assim, ele relata diversos momentos de sua vida, desde a infância, até a fase adulta, narra suas travessuras de infância, o “menino diabo”, bem como da educação que lhe foi dada: “de manhã, antes do mingau, e de noite, antes da cama, pedia a Deus que me perdoasse, assim como eu perdoava aos meus devedores; mas entre a manhã e à noite fazia uma grande maldade, e meu pai, passado o alvoroço, dava-me pancadinhas na cara, e exclamava a rir: Ah! Brejeiro! Ah! Brejeiro!”.

 

Durante sua infância, Brás Cubas comenta sua relação com seu escravo, o negrinho Prudêncio. Como um fidalgo, pertencente à classe alta, Brás Cubas narra sua relação com o garoto, onde podemos observar superioridade por parte de Brás, que montava no negrinho, fazendo ele de cavalo: “fui dos mais malignos do meu tempo, arguto, indiscreto, traquinas e voluntarioso. [...] Prudêncio, um moleque de casa, era o meu cavalo de todos os dias; punha as mãos no chão, recebia um cordel nos queixos, à guisa de freio, eu trepava-lhe ao dorso, com uma varinha na mão, fustigava-o, dava mil voltas a um e outro lado, e ele obedecia”. Além disso, Cubas escreve sobre um amigo da escola, Quincas Borba que, torna-se um filósofo e desenvolve a teoria do “humanitismo”.

 

Quando jovem, conhece Marcela, uma prostituta de luxo por quem se apaixona. Era uma relação baseada em interesses, ainda que Brás diga que ela o amou “durante quinze meses e onze contos de réis”. Preocupado com o envolvimento dos dois, o pai de Cubas resolve que seu filho deve estudar fora do país por um tempo. Sendo assim, ele foi estudar em Coimbra, Portugal, onde se formou em direito.

 

Maria Eduarda fez um excelente resumo desses primeiros capítulos. Por outro lado, posso dizer que, em suma, nós lemos até aqui se concentra em três ou quatro partes,  veja: Nos primeiros capítulos — do primeiro ao vigésimo — temos os seguintes temas na história: 1⁰) a declaração do óbito de Brás Cubas e a visão metafísica, 2⁰) a história dos primeiros anos de vida, a mocidade e a primeira paixão, e, por fim, 3⁰) sua formação acadêmica. Eu fico em dúvida se podemos dizer se a visão metafísica (o encontro de Brás Cubas com Pandora/Natureza) pode ser a segunda parte, mas eu não coloco como segunda porque encaro essa passagem como parte do monólogo do defunto autor, ou seja, ela casa com a parte do anúncio do óbito. Por outro lado, me inclino mais a pensar que a parte da ida de Brás Cubas à Portugal seria a quarta parte, pois vejo que há uma ruptura de tempo na história, ou melhor, considero um encerramento de uma parte da história.

 

Impressões e análises

 

Agora, partindo para as impressões e análises, iremos apontar o que nós pensamos a respeito da obra. Iremos mostrar a sensação que a leitura nos causou e também algumas das interpretações que conseguimos obter de certas passagens. Maria Eduarda, por exemplo, destaca o seguinte sobre sua leitura:

 

Para mim, a leitura do texto mostrou-se confusa diversas vezes, algumas situações são intercaladas de pensamentos”.

 

De certo modo, eu entendo a dificuldade que há em ler Machado de Assis pela primeira vez. Considero que um dos motivos para tal desconforto seja a falta de uma orientação, afinal, há autores que demandam uma orientação teórica ou o acompanhamento de um professor, aliás, até há uma orientação teórica na escola, isto, há aulas sobre o livro, sobre o estilo, sobre contexto histórico, porém, vejo que as aulas sobre literatura devem ter uma práxis, em outras palavras, a explicação teórica deve vir acompanhada da leitura da obra — pelo menos de alguns capítulos, pois, eu sei que o tempo é um problema para as aulas, imagine então para uma leitura.

 

Um problema que eu aponto ao leitor jovem, para além da escrita culta com palavras sofisticadas da época, é que ele faz muitas referências. São várias as referências literárias, filosóficas e históricas. Machado de Assis é um autor de repertório, isto é, ele, por ter uma bagagem cultural elevada, demanda isso também de nós leitores.

 

Maria Eduarda diz que o texto é “intercalado de pensamentos”. Eu gosto disso, porque os monólogos são os momentos de intimidade do personagem com o leitor. Veja, é por meio dos monólogos que tomamos contato com as ideias e as reflexões do personagem, como também os seus segredos, os preconceitos, as ambições e as fraquezas. Veja, por exemplo, na primeira parte do livro Memórias do Subsolo, do escritor russo F. Dostoievski, o protagonista realiza um grande monólogo revelando sua intimidade, suas frustrações e seu ressentimento para nós. No entanto, voltemos para as impressões de Maria Eduarda, ela destaca isso:

 

Minha experiência com o livro foi positiva, com a leitura eu senti como se fosse alguém mais sábio contando histórias de sua vida, o qual já está ‘devastado pela vida e saciado dela’. Devido ao texto se tratar de um defunto que não tem nada o que esconder, essas histórias trazem consigo aflições e incertezas”.

 

Partiremos agora para a crítica de alguns capítulos da obra. Faremos algumas observações com base em alguna conceitos.

 

Análise crítica e destaque de alguns capítulos

 

Há dois capítulos no início do Memórias Póstumas de Brás Cubas (cap. II, O emplastro; e o cap. VII, O delírio), que me fizeram pensar em uma questão metafísica da filosofia de A. Schopenhauer, que é a questão da vontade ser uma força do espírito.

 

Quero mostrar que Machado de Assis encarna essa filosofia schopenhaueriana em seu personagem, mostrando uma perspectiva diferente da tradicional visão de “alma sem vontade”.

 

Sabe-se, por exemplo, que em nossa cultura cristã — mas não apenas nela, há o que irei dizer também na cultura budista — uma visão de desapego como condição essencial no pós-vida, ou melhor, uma visão apofática (negativa) sobre as vontades e necessidades da alma. Podemos pensar naquela belíssima oração de encomenda dos mortos presente na obra Morte e Vida Severina, de João Cabral de Melo Neto, onde é cantado a seguinte excelência: “quando passares em Jordão e os demônios te atalharem/ perguntando o que é que levas, dizes coisas de Não’”.

 

Deste modo, pensamos em nossa alma com essa essência por estar de acordo com nossa fé, ou seja, que há uma condição de despojamento da alma para torná-la pura e virtuosa. Mas uma alma se despoja de que, afinal, o que ela diz “NÃO” para se tornar pura? Como dissemos: das vontades, das vaidades e dos vícios. No entanto, dissemos que Machado de Assis parece contrariar essa visão de despojamento das vaidades, mas não pense que ele vai optar por uma via apofântica (afirmativa), ou seja, que aqui ele vai afirmar os desejos da alma; não, vejo que ele ainda permanece nessa via negativa, porém, sua ideia de despojamento da alma será a de negar a ética e a moral da sociedade. Contudo, sua negação é a de um “pessimismo ético social”.

 

Enfim, Machado nos oferece um personagem cínico, um personagem que nada deve às regras sociais, por isso ele assume uma liberdade narrativa de falar mal sem sentir culpa do que disse. A alma do defunto autor apresenta um vício — será nesse contexto um vício? —: a perda da tão contraditória polidez; sua alma sem as vestes da moral deixa transparecer agora uma nudez de “honestidade sem medidas”, sem limites, sem pudor; assim, sem trajar nenhuma máscara, ele diz o que quer sobre as falhas dos outros e sobre suas próprias falhas — mesmo que ele fale das próprias falhas com muito orgulho e deboche. É por meio disso, portanto, que ele nos mostra um conceito de alma diferente do tradicional. Aliás, seria Brás Cubas o espírito do filósofo grego Diógenes de Sinope, o Cínico? Incito essa questão com as palavras do defunto autor: decifra-me ou devoro-te? Deixo para ti, leitor, tal enigma.

 

Outro membro da nossa Confraria destacou uma passagem interessante, e dela extraiu uma aproximação com um dos conceitos filosófico de Foucault. Yago Sousa, estudante de filosofia da UEPB, destacou a seguinte passagem:

 

Quem não sabe que ao pé de cada bandeira grande, pública, ostensiva, há muitas vezes várias outras bandeiras modestamente particulares, que se hasteiam e flutuam à sombra daquela, e não poucas vezes lhe sobrevivem? Mal comparando, é como a arraia-miúda, que se acolhia à sombra do castelo feudal; caiu este e a arraia ficou.” (Capítulo IV: A Ideia Fixa).

 

Yago Sousa fez a seguinte observação dessa passagem: “Essa passagem da obra me chamou muito atenção, ela tem uma certa semelhança com o pensamento de Foucault,  na obra ‘Em Defesa da Sociedade’, no qual ele trata da sua idéia de biopolítica, e o conceito de micropoder. Digo isso, pois, o poder não se encontra em apenas uma pessoa, mas em vários grupos que detém o poder. Mas, não só isso, como também, a hierarquização social, em que a classe considerada mais ‘fraca’  deve viver à mercê do poder de quem está acima da hierarquia social”.

 

O filósofo Michel Foucault tem uma obra bastante sobre a política e a sociedade. Faz muito sentido a questão das “várias bandeiras” ser igual a dinâmica da microfísica do poder de Foucault — lembrando que para este pensador o poder não se concentra ou está na mão de alguém, o poder circular, portanto, o que existe são relações de poder; o poder circula nos aparelhos de disciplinas da sociedade normativa. Portanto, falar dessas “várias bandeiras particulares” lembra sim Foucault. Assim Yago Sousa fez uma observação interessante.

 

Devo dizer que também tenho algo a observar neste capítulo IV que Yago Sousa nos trouxe. Destaco a seguinte passagem dele:

 

Todavia, importa dizer que este livro é escrito com pachorra, com a pachorra de um homem já desafrontado da brevidade do século, obra supinamente filosófica, de uma filosofia desigual, agora austera logo brincalhona, coisa que não edifica nem destrói, não Inflama nem regala, e é todavia mais do que passatempo e menos apostolado”. (Cap. IV: A ideia fixa).

 

Gosto dessa passagem porque Brás Cubas deixa transparecer em sua fala uma certa “essência” dionisíaca da filosofia de Friedrich Nietzsche. A maneira que o defunto autor se diz ser um brincalhão parece muito com o que o filósofo alemão diz no início de Ecce Homo, que prefere antes ser um sátiro do que um santo.

 

Desses 20 capítulos, os mais interessantes para mim, foram “O Emplastro”, “A Ideia Fixa”, “O Delírio” e “Uma Questão Imoral”. Pudemos ver aqui nesse texto que o capítulo sobre “A Ideia Fixa” despertou um interesse em comum aos membros da Confraria, de fato, ele é um capítulo deveras interessante, e eu acredito que o interesse compartilhado seja por causa da filosofia que ele nos fornece, mas não, não que esse texto seja uma escritura filosófica propriamente, mas porque ele é um intercessor para tal finalidade filosófica, explico-lhes: chamo esse capítulo de Memórias Póstumas… de “intercessor” pensando na metodologia de criação do filósofo francês G. Deleuze; este pensador desenvolveu uma forma de fazer filosofia a partir de uma “não-filosofia”, isto significa que para ele a filosofia se faz pela intercessão da arte, da ciência, do teatro e do cinema. Para nós, tal como foi para Deleuze, o que não é filosofia se torna filosofia, portanto, essa obra literária que apresenta passagens que se auto afirmem filosófica, não é em si filosófica, mas ela serve ao filósofo como uma intercessão filosófica. Mas chega desse conceito esquizofrênico. Voltemos aos capítulos.

 

Bom, quero retomar os capítulos II e VII. No capítulo sobre o emplastro, Brás Cubas nos mostra realmente o que é o seu conceito de “ideia fixa”. Mas, antes de mostrar tal ideia, ele já nos lança um desafio com as palavras ameaçadoras da temível esfinge: “decifra-me ou devoro-te”.

 

Quero eu ter a astúcia de Édipo para interpretá-lo dignamente agora: o emplastro, esse remédio, serve justamente para curar o mal do século: a melancolia. Vejo que Brás Cubas se aproxima — e eu já constatei isso anteriormente — do filósofo Nietzsche. Veja o porquê: esse filósofo também buscava curar as pessoas do chamado niilismo (essa palavra vem do Latim e significa “Nada”), essa condição faz a vida se esgotar de sentido e de suas potências afirmadoras levando o sujeito a padecer de depressão.

 

Mas, veja o seguinte: Brás Cubas neste capítulo não faz questão de esconder uma coisa: sua vaidade. Ele quer fazer esse emplastro não pensando realmente naqueles que sofrem do mal do século, mas buscando o reconhecimento e a glória. O enigma que ele lançou anteriormente mostra-se bem no último parágrafo do capítulo quando ele cita os dois tios (o cônego e o militar), e nos pergunta quem tem razão: “a humildade do cônego ou o orgulho do militar?”. Portanto, temos esse conflito: ser vaidoso ou ser humilde, eis a questão?

 

No entanto, querem saber de uma coisa — mas saibam que eu não estou tomando partido com o que direi — relacionado ao que é a vida? Recentemente li uma frase do primeiro filósofo brasileiro chamado Matias Aires sobre a vaidade, onde ele diz que a vida é só um “papel de teatro”, a vida vaidosa é uma mera farsa, e isso se encaixa perfeitamente com o que Brás Cubas contempla no capítulo sobre o seu delírio e acaba tendo uma experiência metafísica, e percebeu o seguinte: que a vida é um espetáculo. Aliás, faço questão de colocar aqui as palavras de Matias Aires e em seguida as palavras de Machado de Assis para verem a semelhança de como eles tratam a vida, ou seja, a existência:

 

Quem são os homens mais do que a aparência de teatro? A vaidade e a fortuna governam a farsa desta vida. Ninguém escolhe o seu papel, cada um recebe o que lhe dão. Aquele que sai sem fausto nem cortejo e que logo no rosto indica que é sujeito à dor, à aflição, à miséria, esse é o que representa o papel de homem. A morte, que está de sentinela, em uma das mãos segura o relógio do tempo. Na outra, a foice fatal. E com esta, em um só golpe, certeiro e inevitável, dá fim à tragédia, fecha a cortina e desaparece.” (Matias Aires, in Reflexões sobre a vaidade dos homens).

 

Agora mostro a passagem de Machado de Assis:

 

Tal era o espetáculo, acerbo e curioso espetáculo. A história do homem e da Terra tinha assim uma intensidade que lhe não podiam dar nem a imaginação nem a ciência [...] Os séculos desfilavam num turbilhão, e, não obstante, porque os olhos do delírio são outros, eu via tudo o que passava diante de mim, flagelos e delícias, desde essa coisa que  se chama glória até essa outra que se chama miséria. Aí vinham a cobiça que devora, a cólera que inflama, a inveja que baba, e a enxada e a pena, úmidas de suor, e ambição, a fome, a vaidade, melancolia, a riqueza, o amor, e todos agitavam o homem, como um chocalho, até destruí-lo, como um farrapo. Eram as formas várias de um mal, que ora mordia a vísceras, ora mordia o pensamento, e passeava eternamente as suas vestes de arlequim, em derredor da espécie humana”. (Cap. VII: O Delírio).

 

Eis o que é a vaidade das vaidades, aquilo que o eclesiastes nos diz como “tudo é vaidade”, lançar-nos uma contemplação de que a vida é uma mera aparência e que toda grandiosidade é algo tão fugaz. Temos nesses autores (Machado, Matias e agora o Eclesiastes) algo bastante comum no tratamento da vida: que ela é um espetáculo. O desencanto contribui muito para vermos a transparência do véu da vaidade que cobre o palco. Esse véu deixa escapar a visão do mundo ao espectador, e neste caso o espectador é Brás Cubas.

 

Conclusão

 

Contudo, essas foram as primeiras impressões, análises e comentários dos primeiros 20 capítulos de Memórias Póstumas de Brás Cubas. Continuaremos nossa leitura dessa magnífica obra de Machado de Assis, e publicaremos a próxima análise — do capítulo XXI até o LXII — no dia 8 de julho.

 

Agradeço aos membros da Confraria que disponibilizaram suas impressões para podermos escrever esse texto. E também agradecemos ao Dito & Feito por abrir espaço aqui ao nosso grupo de leitura.

 

Autores:

 

Janilson Ferreira Fialho Filho (org)

 

Maria Eduarda Bento do Nascimento Silva

 

Yago de Sousa Araujo

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